Labioplastia: A Mutilação Genital Feminina (MGF) ‘Voluntária’

Por Adriana Quintão, doutoranda em Sociologia no Iscte-IUL (adriana_quintao@iscte-iul.pt)

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a mutilação genital feminina (MGF) como «todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outras lesões nos órgãos genitais femininos por razões não médicas» (grifos meus). Ao redor do mundo, já são mais de 200 milhões de vítimas, afirma a OMS. Segundo a Direção-Geral da Saúde (DGS), 853 casos de MGF foram registados em Portugal entre 2014 e 2022. Ainda de acordo com a DGS, a MGF «pode causar complicações de saúde, incluindo infeção grave, dor crónica, depressão, infertilidade e morte». A MGF que chamarei de ‘tradicional’ – aquela que deu origem ao termo e se refere à mutilação da genitália de bebés, meninas e raparigas sem o seu consentimento, por motivos sociais e/ou religiosos –, é reconhecida como crime contra os direitos humanos de meninas e raparigas pela OMS, a DGS e diversos outros órgãos de saúde ao redor do mundo. Estes mesmos órgãos estão envolvidos com várias iniciativas para erradicá-la, felizmente.

Desejo então focar este texto na MGF que ainda não é reconhecida como mutilação, aquela que estou a chamar de MGF ‘voluntária’: a labioplastia. A labioplastia, uma cirurgia estética genital feminina (CEGF), enquadra-se na definição de MGF da OMS: envolve a remoção parcial ou total dos lábios internos (labia minora) e/ou externos (labia majora) da vulva (parte constituinte da genitália externa feminina), muitas vezes incluindo também o prepúcio e os nervos do clítoris, por razões meramente estéticas (ou seja, não médicas). Porém, ao contrário da MGF tradicional, a MGF ‘voluntária’ é realizada com o total consentimento – e escolha – da rapariga ou mulher.

Segundo os dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica e Estética (ISAPS), a labioplastia foi um dos dez procedimentos plásticos mais realizados nos últimos anos: somente no ano de 2022, foram feitas 194.086 labioplastias no mundo, sendo 21.685 na Europa (Alemanha, Espanha, Grécia, Itália e Reino Unido). Porém, os dados da ISAPS são limitados; apenas 16 países fazem parte da Sociedade, os inquéritos geradores destes dados são exclusivos a cirurgiões plásticos membros da ISAPS e a participação destes cirurgiões é voluntária. Soma-se a estas limitações o fato de que outras especialidades médicas que não fazem parte da ISAPS também realizam labioplastia, como ginecologistas e até dermatologistas. Desta forma, estima-se que o número real de labioplastias realizadas em todo mundo a cada ano seja muito maior que o fornecido pela ISAPS.

Assim como a MGF tradicional, a MGF ‘voluntária’ também é realizada em meninas e raparigas. No Reino Unido, centenas de raparigas menores de 18 anos já fizeram labioplastia, um dado alarmante que chegou a ser tema de reportagem da BBC News em 2017, «The children seeking cosmetic surgery on their vaginas». Quero aproveitar o título desta reportagem para fazer uma observação: a BBC, assim como tantos outros média e até investigadores académicos, referiu-se erroneamente à vulva como «vagina». Este ‘erro’ é o resultado de séculos de muita desinformação e silenciamento da vulva, dentro e fora da academia. Mas este tema precisaria – e merece! – um texto por si só. Deixo então uma sugestão de leitura bastante informativa, mas também muito acessível e fluida, que ajudará a leitora a compreender melhor a que me refiro: «O Fruto Proibido: Uma história cultural da vulva», de Liv Strömquist (Bertrand Editora, 2021, 143p.).

Por ser uma cirurgia, a labioplastia envolve riscos, como cicatrizes, dor, infeção e falta de sensação na região, pois muitas vezes é feita a redução do prepúcio – a pele que cobre parte dos nervos do corpo e da glande do clítoris (vide Figura 1) – e até de parte do clítoris. Portanto, a labioplastia coloca em grande risco o prazer sexual e a saúde física das mulheres, visto que a fisiologia correta do clítoris – sua forma, tamanho e anatomia neurovascular – ainda está incompleta ou faltando nos livros de anatomia mais renomados. Isto significa que a labioplastia e outras CEGFs são executadas por médicos que geralmente não tiveram acesso à anatomia correta do clítoris. Foi este o caso de Jessica Pin, estadunidense fundadora do Sexual Health Equity Project, uma organização sem fins lucrativos que advoga pela educação da anatomia genital feminina. Pin foi mutilada numa labioplastia malfeita que a deixou praticamente sem sensação no clítoris. Desde então, ela publicou um artigo com a anatomia neurovascular correta do clítoris (vide Figura 2) e já conseguiu mudar 14 livros de anatomia usados em diversas universidades no mundo.

Mas e se a aparência de suas vulvas for a causa de inseguranças e traumas de milhares de raparigas e mulheres? A labioplastia não seria uma forma de empoderamento feminino e agência sexual para elas? Há quem defenda que sim. Contudo, devemos considerar primeiramente os motivos de tais inseguranças e traumas. As constantes associações negativas à genitália feminina feitas nos média, por médicos e pela sociedade de maneira geral precisam ser consideradas como fatores estimulantes para o aumento da labioplastia e outras CEGFs. Há de se questionar também o quão ‘voluntária’ é a escolha das raparigas e mulheres pela labioplastia, já que elas não têm conhecimento dos reais riscos que a cirurgia promove, pois nem mesmo os cirurgiões que a executam os conhecem…

A desinformação, os tabus e estigmas sobre a vulva, o clítoris e o prazer sexual feminino têm impacto direto e negativo na vida sexual das mulheres cisgénero. O corpo feminino é tratado como mercadoria, sendo constantemente colocado sob as lentes do mercado, que cria ‘problemas’ para os quais tem ‘soluções’; cabelos brancos e/ou crespos, rugas faciais, seios ‘caídos’ ou ‘pequenos’, celulite, estrias, ‘gordurinhas’ indesejadas: para tudo há as ‘soluções’ estéticas – muitas agressivas e até permanentes – já banalizadas e inseridas como ‘naturais’ na rotina de tantas mulheres… Aparentemente, chegou a vez da vulva.

Figura 1: Genitália externa feminina, com identificação das partes (Atlanta, 2023 – tradução: autora).

Figura 2: Detalhamento da anatomia neurovascular do clítoris (Pin, 2020).

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