Desafios Invisíveis: Casamentos Precoces e Forçados entre Mulheres Imigrantes

Por Bárbara Backstrom, Investigadora Integrada no CICS.NOVA, docente da Universidade Aberta

O Dia Internacional dos Migrantes, celebrado a 18 de dezembro desde 2000, não apenas homenageia a diversidade cultural, mas também nos lembra dos desafios enfrentados pela população migrante em todo o mundo. Uma década antes, em 1990, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a “Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de Suas Famílias”, estabelecendo a necessidade de proteger os direitos fundamentais dos migrantes.

No contexto desse dia significativo, é essencial direcionar a nossa atenção para um grupo particularmente vulnerável: as mulheres migrantes. Muitas delas enfrentam obstáculos monumentais, como é o caso de casamentos precoces e forçados, práticas profundamente enraizadas em algumas culturas de origem.

Neste texto, o objetivo é destacar, a propósito desta data, os desafios enfrentados pelas mulheres imigrantes, especialmente no contexto de casamentos precoces e forçados. O texto procura, mais do que tudo, consciencializar o/a leitor/a sobre a complexidade dessas questões, destacando a importância de combater práticas prejudiciais para a saúde e que violam os direitos humanos das mulheres imigrantes.

Casamentos Precoces, Forçados e Mulheres Imigrantes

Quando examinamos mais de perto a vida das mulheres imigrantes, especialmente aquelas provenientes de países onde práticas tradicionais como casamentos precoces e forçados e a Mutilação Genital Feminina (MGF) prevalecem, entramos num mundo de desafios invisíveis para muitos. Somos confrontados com a dura realidade dessas cerimónias, que muitas vezes acontecem antes que as jovens atinjam a maturidade física e emocional.

O casamento infantil está intimamente ligado à prática da mutilação genital feminina. Em certas comunidades, a MGF sinaliza que uma rapariga está pronta para o casamento, perpetuando um ciclo de abuso que afeta profundamente a saúde física e mental dessas jovens, afetando igualmente a sua liberdade, educação e direitos básicos. Estes casamentos acabam por resultar em práticas muito negativas para a saúde das crianças, jovens e mulheres imigrantes provenientes de países onde estas mesmas práticas ainda se mantêm, e continuam a ser reproduzidas nos países para onde se imigra, como é o caso de Portugal. São práticas profundamente enraizadas em tradições culturais, tornando a mudança de comportamento uma tarefa árdua. Permanecem no seio da nossa sociedade e, muitas vezes, a escola e a sociedade não se apercebem destes fenómenos, que ultrapassam a questão da saúde sexual e reprodutiva, interferindo em todas as esferas da vida destas meninas, jovens, e mulheres imigrantes:

“Existem argumentos culturais, relacionados com as tradições, para justificar os casamentos precoces e forçados, sendo muitas vezes vistos pelas próprias meninas como algo que é preciso manter e de que se orgulham. Por exemplo, em algumas comunidades, uma menina que tem um casamento arranjado desde cedo é melhor vista e aceite pela comunidade. Apesar destas razões, existem casos em que a prática dos casamentos forçados, arranjados e precoces, têm consequências extremas, levando a atos de violência e até à morte” (APF, 2023).

Existe o respeito pela cultura e pelas tradições, mas não se pode aceitar todas as práticas culturais e todas as tradições, sobretudo quando estas afetam a saúde física e mental, sendo consideradas um crime e um ataque aos direitos humanos e liberdade fundamentais.

As estatísticas são alarmantes. Em todo o mundo, milhões de jovens mulheres casaram antes dos 18 anos, muitas vezes antes dos 15 anos. Esses casamentos forçados não apenas roubam a liberdade e os direitos dessas meninas, mas também têm consequências devastadoras para a sua saúde sexual e reprodutiva.

Alguns títulos de notícias recentes destacam este fenómeno no nosso país: “Em seis anos mais de 600 casamentos envolveram pelo menos um menor de 18 anos” (Pereira, 2021). Na notícia, é referido que os casamentos precoces têm diferentes origens: uns incidem sobre portugueses, outros seguem a teia dos fluxos migratórios (Pereira, 2021).

A prática está longe de ser uma questão isolada nos países de origem. Ela persiste mesmo quando as mulheres migrantes se mudam para países como Portugal. A pandemia, por exemplo, exacerbou essa situação, resultando num aumento dos casamentos de menores, como relatado no Jornal Expresso Online de 23 de agosto de 2023: “Casamentos de menores em Portugal estão a aumentar depois da pandemia” (Jornal Expresso, 2023).

De acordo com o Roteiro da União Europeia para referenciação sobre o casamento forçado/precoce para profissionais de primeira linha, as pesquisas ocorridas nos Estados Membros da União Europeia demonstraram que o casamento forçado/precoce ocorre predominantemente no estrangeiro, a maioria das vítimas são raparigas de diferentes culturas e matrizes nacionais, e os autores são normalmente os pais ou membros da família, sendo os maus-tratos na família um fator de risco fundamental (SEF, s. d.).

Apesar dos inúmeros desafios que estas práticas colocam, já se notam alguns progressos para combater e erradicar as mesmas. Iniciativas como o grupo de trabalho formado pelo governo português para prevenção e combate aos casamentos infantis, precoces e forçados mostram um esforço contínuo para enfrentar essa questão. De igual forma, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras concebeu um novo modelo de sinalização de vítimas em viagem para países onde continuam a ser comuns estas práticas. Também tem vindo a aumentar “a capacidade de diagnóstico” e de sinalização, e tem havido um esforço para chegar a cada vez mais profissionais através de ações de informação/formação. Ao nível da União Europeia, a erradicação destas práticas constitui uma das prioridades da ação externa da UE no domínio da promoção dos direitos da mulher e dos direitos humanos (Goerens, 2018).

Reflexões Finais

Em jeito de nota conclusiva, apesar de ser possível identificar a relação direta entre o casamento precoce e forçado com o fenómeno das migrações, faltam estudos e evidências que demonstrem a gravidade da situação. É um fenómeno de particular complexidade, ainda invisível, e que pode estar intimamente relacionado com a cultura e tradições de origem.

Nesta reflexão, verificou-se alguma dificuldade em encontrar dados, e sobretudo em distinguir dados de população migrante e população portuguesa. Pensamos que esta clarificação é fundamental e urgente para que se conheçam de forma mais aprofundada estes fenómenos, possibilitando um trabalho de prevenção e combate mais eficaz, dirigido a populações específicas.

O casamento precoce e forçado traz consequências nefastas, físicas e psicológicas, extremamente graves ao nível da saúde sexual e reprodutiva, porque uma menina que casa ainda enquanto criança não se encontra com o seu desenvolvimento físico e emocional concluído. O casamento precoce traz complicações mais frequentes durante as gravidezes e os partos destas meninas e raparigas, o que pode ser associado a maiores taxas de mortalidade materna.

Por fim, é crucial uma abordagem intersectorial e baseada no conhecimento para erradicar estas práticas prejudiciais. Organizações como a UNICEF, o Comitê dos Direitos das Crianças e o governo português expressaram sérias preocupações sobre esse aumento, destacando a necessidade urgente de combater essas práticas.

Assim, ao refletirmos sobre a diversidade que a população migrante traz para as sociedades, devemos também reconhecer e enfrentar os desafios que as mulheres imigrantes enfrentam, especialmente no contexto dos casamentos precoces e forçados.

Somente com consciencialização pública, educação e ação coordenada e contínua podemos proteger os direitos humanos e a liberdade fundamental das mulheres imigrantes, garantindo que possam viver vidas dignas e seguras, independentemente da sua origem cultural. E deste modo podemos verdadeiramente honrar o espírito do Dia Internacional dos Migrantes e trabalhar para um mundo onde todos os indivíduos sejam tratados com dignidade e respeito, independentemente de sua origem ou situação migratória.

Este Dia Internacional dos Migrantes serve como um lembrete poderoso da nossa responsabilidade coletiva neste processo contínuo de proteger e promover os direitos de todos, independentemente da sua nacionalidade, e em garantir que todas as mulheres, independentemente de sua origem cultural, possam viver vidas dignas e seguras.

Referências bibliográficas

Associação Para o Planeamento da Família (APF). (2023). Casamentos Forçados. Recuperado de https://apf.pt/informacao-tematica/violencia-sexual-e-de-genero/casamentos-forcados/

Goerens, C. (2018). Relatório Rumo a uma estratégia externa da UE contra os casamentos precoces e forçados – próximos passos. Comissão dos Assuntos Externos, Parlamento Europeu. Relatório – A8-0187/2018.

Jornal Expresso. (2023, 25 de agosto). Casamentos de menores em Portugal estão a aumentar depois da Pandemia. Recuperado de https://expresso.pt/sociedade/2023-08-25-Casamentos-de-menores-em-Portugal-estao-a-aumentar-depois-da-pandemia-85590f21

Pereira, A.C. (2021). Em seis anos mais de 600 casamentos envolveram pelo menos um menor de 18 anos in jornal público (online) Em seis anos mais de 600 casamentos envolveram pelo menos um menor de 18 anos | Direitos humanos | PÚBLICO (publico.pt)

Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). (s.d.). Combate às Práticas Tradicionais Nefastas. Recuperado de https://www.sef.pt/pt/pages/conteudo-detalhe.aspx?nID=103