Fecho das urgências e o agravamento da violência obstétrica institucional

Cleidi Pereira, Jornalista, Doutoranda em Sociologia no CIES-Iscte

Não é um fenómeno novo em Portugal, mas, de tempos em tempos, o noticiário serve de termómetro para o descaso a que grávidas estão submetidas num país que possui uma das mais baixas taxas de fecundidade da União Europeia[1] – e só não ocupa as últimas posições do ranking devido ao contributo da fecundidade da população estrangeira[2]:

“’Reviravolta de filme’: Matilde, uma das bebés do ano, nasce em ambulância em plena A23”[3]

“Bebé nasce em ambulância e evita viagem de 140 km”[4]

“Bebé nasce na ambulância em Benavente”[5]

“Ambulância foi a sala de partos de António em Ourém”[6]

“Grávida do Barreiro transportada em situação de urgência para Lisboa dá à luz na ponte 25 de Abril”[7]

Uma recente reportagem no jornal Expresso[8] contabilizou 40 nascimentos em ambulâncias somente neste ano, sendo 21 no verão, entre julho e agosto, 8 em janeiro e o restante nos demais meses. Estamos a falar de um problema estrutural e tão antigo que, há 15 anos, em setembro de 2009, o Diário de Notícias[9] também publicava uma matéria sobre nascimentos em trânsito. Mas com uma diferença: na época, somavam-se cerca de 40 nascimentos em ambulâncias em quatro anos:

“Durante os quatro anos deste Governo, e só em ambulâncias dos bombeiros, nasceram a caminho do hospital 40 bebés. E a maioria dos partos aconteceu na fase em que o País saiu à rua para contestar a decisão do Executivo de encerrar serviços de urgência, o que acabou por levar à demissão do então ministro da Saúde. Um ano antes de Correia de Campos tomar posse, em 2004, os bombeiros apenas contabilizaram cinco nascimentos. Nas vésperas (Dezembro de 2007) de o ministro abandonar o Governo o número era de 12”, dizia trecho da reportagem.

Estamos diante de um dado alarmante: de janeiro a agosto de 2024, Portugal registrou o mesmo número de nascimentos em trânsito contabilizados durante quatro anos, entre 2005 a 2009. É claro que tais estatísticas veiculadas nos media deveriam ser averiguadas, mas elas, por si só, já ilustram claramente um processo de agravamento de um cenário de violência obstétrica institucional. E isso é só a ponta do iceberg. Há problemas no acesso à saúde, com utentes relatando dificuldades de agendamento de consultas e análises essenciais na gravidez, como a ecografia das 12 semanas.

Portanto, o mais recente ciclo de encerramento das urgências obstétricas, regulamentado pela operação batizada (ironicamente) de “Nascer em segurança”, pode ser enquadrado em pelo menos uma das sete tipologias de violência obstétrica, conforme a classificação de Browser e Hill (2010). Estamos a falar de “abandono e recusa de cuidados”, uma das situações que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), equivale a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres. “Todas as mulheres têm direito ao mais alto padrão de saúde atingível, incluindo o direito a uma assistência digna e respeitosa durante toda a gravidez e o parto, assim como o direito de estar livre da violência e discriminação” (OMS, 2014).

Cabe ressaltar que a problemática em questão não é o acesso ao hospital como o único local onde é seguro nascer, até porque atualmente há estudos que atestam, por exemplo, a segurança do parto domiciliar quando planeado e assistido por enfermeiras-obstetras (Hutton et al, 2019). O que está em jogo é a ansiedade gerada nas gestantes e suas famílias e a negação ao direito de escolha dos serviços e prestadores de cuidados de saúde, previsto no artigo 2º da Lei n.º 15/2014. Ainda que as histórias desses nascimentos insólitos – em ambulâncias, aeronaves, pontes e autoestradas – tenham finais felizes, é preocupante a frequência elevada de partos extra-hospitalares não planeados e assistidos por profissionais que, embora extremamente competentes, dentro das suas funções, não poderão garantir a segurança e a qualidade dos cuidados de saúde perinatal que devemos ambicionar.

Referências bibliográficas:

Bowser, D. and Hill, K. (2010). Exploring Evidence for Disrespect and Abuse in Facility-Based Childbirth. Report of a Landscape Analysis; Harvard School of Public Health University Research Co.: Harvard.

Hutton, E. K., Reitsma, A., Simioni, J., Brunton, G., & Kaufman, K. (2019). Perinatal or neonatal mortality among women who intend at the onset of labour to give birth at home compared to women of low obstetrical risk who intend to give birth in hospital: a systematic review and meta-analyses. EClinicalMedicine, 14, 59-70.

OMS (2014). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus tratos durante o parto em instituições de saúde.

Notas de Rodapé:

[1] Conforme o Eurostat, em 2022, a UE registou 1,46 nascimentos por mulher e Portugal, 1,43.

[2] Em 2023, segundo o INE, as mães estrangeiras foram responsáveis por 21,8% do total de nascimentos em Portugal.

[3] https://sicnoticias.pt/pais/2024-01-01-Reviravolta-de-filme-Matilde-uma-das-bebes-do-ano-nasce-em-ambulancia-em-plena-A23-e6e29769

[4] https://record.r7.com/record-europa/fala-portugal/bebe-nasce-em-ambulancia-e-evita-viagem-de-140-km-13082024/

[5]  https://tomarnarede.pt/insolito/bebe-nasce-na-ambulancia-em-benavente/

[6] https://www.cmjornal.pt/sociedade/detalhe/ambulancia-foi-a-sala-de-partos-de-antonio-em-ourem

[7] https://www.cmjornal.pt/sociedade/detalhe/gravida-do-barreiro-transportada-em-situacao-de-urgencia-para-lisboa-da-a-luz-na-ponte-25-de-abril

[8] https://expresso.pt/sociedade/2024-08-29-este-ano-ja-nasceram-40-bebes-em-ambulancias-metade-deles-no-verao-e-inaceitavel-e-nao-pode-continuar-94616890

[9] https://www.dn.pt/portugal/mais-bebes-a-nascer-nas-ambulancias-e-menos-um-ministro-1354751.html/