Sobre o direito ao tratamento digno desde o nascimento

Por Cleidi Cristina Pereira, jornalista, mestre em Ciência Política e Relações Internacionais e doutoranda em Sociologia pelo Iscte*

O parto respeitado deveria ser reconhecido como um direito não só das mulheres, mas também das crianças. “Para mudar o mundo, é preciso primeiro mudar a forma de nascer”, insiste – há algumas décadas – o obstetra e cientista francês Michel Odent. Independentemente da classe social, a violência obstétrica é um fenómeno histórico e globalizado, mas que só vem ganhando destaque nos países do chamado Norte Global há pouco tempo.

Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas há 64 anos, a Declaração dos Direitos das Crianças (Unicef, 1959) cita a palavra nascimento três vezes, mas nenhuma delas faz referência, especificamente, à forma como os bebês têm chegado ao mundo. E mesmo nos países que se orgulham de ostentar elevadas taxas de “parto normal” é a violência, como regra, que deixa suas marcas no cartão de boas-vindas. Se no Brasil a chaga são as cesáreas desnecessárias, em Portugal são as intervenções médicas, como a indução e o uso de fórceps.

Segundo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em 2021 (Betran, Moller, et al, 2021), com 55,7%, o Brasil é o segundo país do mundo com maior percentual de nascimentos pela via cirúrgica – que pode salvar vidas, se bem indicada, mas, por outro lado, aumentar riscos de complicações. Em Portugal, com índice de cesarianas de 36,3%, o sinal amarelo também está aceso: um estudo publicado pela The Lancet Regional Health Europe em 2022 (Lazzerini et al, 2022) mostrou que o país está acima da média europeia na prevalência de intervenções como episiotomias e a manobra de Kristeller, e revelou que uma em cada cinco mulheres foi vítima de abusos físicos, emocionais ou verbais.

Em 2007, a Venezuela tornou-se o primeiro país a reconhecer, em lei, a violência obstétrica como uma das formas de violência de gênero, definindo a prática como “(…) a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelo pessoal de saúde, que se expressa como tratamento desumanizado, abuso de medicação e em converter os processos naturais em processos patológicos, trazendo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres” (Venezuela, 2015). Mas somente em 2014 a OMS viria reconhecer os maus tratos durante o ciclo gravídico-pueperal como um problema de saúde pública (WHO, 2014).

Nascer importa. Parto natural não é um capricho, não é um “modismo” (de milhares de anos, ok) ou coisa de hippies. Uma experiência positiva de parto irá se traduzir, conforme demonstram inúmeros estudos, em facilitação do vínculo mãe-bebê e da amamentação, em uma recuperação mais rápida, sem falar dos inúmeros benefícios imunológicos e hormonais para os recém-nascidos. Já, pelo contrário, uma experiência de violência obstétrica poderá deixar marcas profundas na vida das mulheres e seus bebês, incluindo estresse pós-traumático, medo do parto, imagem corporal negativa (Reed, Sharman & Inglis, 2017). Nos bebês, as consequências ainda são pouco estudadas.

No preâmbulo da Declaração dos Direitos das Crianças, consta que “a criança, por motivo da sua falta de maturidade física e intelectual, tem necessidade de uma protecção e cuidados especiais, nomeadamente de proteção jurídica adequada, tanto antes como depois do nascimento”. Mas e durante o nascimento? Como garantir que um parto não seja antecipado por conveniência médica? Que o bebê nasça no seu tempo, quando todos os seus orgãos estiverem desenvolvidos? A quem recorrer quando o recém-nascido, depois de sofrer uma cascata de intervenções junto com sua mãe, ainda recebe fórmula no hospital, ao invés de ser alimentado com leite materno? De quem cobrar a conta inestimável da privação do contatopele a pele, na chamada golden hour, da privação do contato com seus cuidadores nas primeiras horas de vida?

Há tanto para se avançar quando falamos de direitos das crianças, que ainda são encaradas pela sociedade como seres que não possuem direitos. Mas bem que poderíamos começar pelo começo. Afinal, inúmeras pesquisas têm demonstrado a importância dos primeiros mil dias de vida, ou seja, da concepção até os dois anos aproximadamente. É o período da janela de oportunidades em termos de cuidados, uma fase crucial para a saúde e para o desenvolvimento infantil. E nascer em um ambiente acolhedor, em que o respeito e a dignidade se fazem presente desde o princípio pode, sim, fazer toda a diferença não só para o indívio como também para a sociedade.

 

Referências:

Betran, A. P., Ye, J., Moller, A. B., Souza, J. P., & Zhang, J. (2021). Trends and projections of caesarean section rates: global and regional estimates. BMJ Global Health, 6(6), e005671.

Lazzerini, M., Covi, B., Mariani, I., Drglin, Z., Arendt, M., Nedberg, I. H., … & IMAgiNE EURO study group. (2022). Quality of facility-based maternal and newborn care around the time of childbirth during the COVID-19 pandemic: online survey investigating maternal perspectives in 12 countries of the WHO European Region. The Lancet Regional Health-Europe, 13, 100268.

Reed, R. Sharman, R. Inglis, C. (2017). Women’s descriptions of childbirth trauma relating to care provider actions and interactions. BMC Pregnancy Childbirth. 17(1).

Unicef. (1959). Declaração universal dos direitos da criança. Nova Iorque: UNICEF.

Venezuela, R. B. D. (2015). Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia. Instituto Nacional de la Mujer.

World Health Organization. (2014). The prevention and elimination of disrespect and abuse during facility-based childbirth: WHO Statement (No. WHO/RHR/14.23). World Health Organization.

*Texto inicialmente publicado na Plataforma Geni, em 2022.