A amamentação como campo profissional de especialização

Vera Henriques, Doutoranda em Sociologia no CIES-Iscte

A amamentação é muito mais do que um evento biológico (muitas vezes entendida como uma “extensão natural” do nascimento) e, por isso, deve ser entendida dentro dos contextos económico, social e político que lhe dão significado. Para além disso, enquanto prática social, está imbuída de sentidos subjetivos importantes a ter em conta quando se estuda este tema (Augusto, Neves, Henriques 2023).

A amamentação é, assim, socialmente construída e, por isso, compete à análise sociológica desmistificar o suposto carater “natural e normal” que habitualmente lhe é atribuído (comparando-se, com frequência, a amamentação humana com a de outros mamíferos). Só assim se consegue entender a proliferação cada vez maior de “especialistas em amamentação” sugerindo que pais e mães os procurem para tomar decisões “tecnicamente suportadas”, como as IBCLC (International Board of Lactation Consultant), as CAMs (Conselheiras de Aleitamento Materno), as ALs (Assessoras de Lactação) ou as DAMs (Doulas do Aleitamento Materno), entre outras denominações, cuja nomenclatura varia em função também da instituição de formação destes profissionais. É de todo o interesse analisar o aparecimento de novos campos de saberes periciais (como surgem, que instituições os forma e/ou certifica, que critérios são usados, etc.) e quem são as novas protagonistas que influenciam a construção social da amamentação, a quem mães e famílias podem recorrer em casos de dificuldades ou na procura de informações.

A sociologia das profissões fornece-nos importantes contributos para entender este fenómeno. O desenvolvimento das profissões é, possivelmente, uma das mais importantes mudanças que ocorreu no sistema ocupacional das sociedades modernas (Parsons, 1954). Uma profissão não nasce de um vazio, pois está inscrita em lutas e tensões que a definem enquanto tal. Isto exige a manutenção de uma ordem simbólica complexa, que ocorre em simultâneo com atos de usurpação, exclusão e coerção de outros grupos profissionais (Parsons, 1954: 38). Estarão, assim, os especialistas em amamentação a ocupar um lugar ligado ao cuidado e à maior proximidade no acompanhamento materno infantil, deixado vago com a crescente hospitalização e medicalização dos partos, cuidados com a puérpera e pós-parto? Como se relacionam os especialistas em amamentação com os profissionais de saúde?

As especialistas em amamentação são, na sua maioria, mulheres. É, por isso, um contexto altamente feminizado assente nos conceitos de cuidado tradicionais, em que o cuidado é uma qualidade supostamente “inata” às mulheres e que, talvez por isso, se espera que seja aplicado de forma gratuita e não profissional (Daniels 1987; Davies 1995, 1996; Duffy 2011; citados em Torres, 2014: 245). Para Torres, estes grupos oferecem uma excelente oportunidade para se estudar as dinâmicas  de negociação entre o pagamento de serviços e a prestação de cuidados intimamente ligados ao feminino (tendo em conta que as mulheres sempre foram as “naturais” providenciadoras destes serviços), num contexto altamente genderizado como é o da maternidade e da amamentação (Wertz and Wertz 1989, citados em Torres, 2014: 248).

O desaparecimento das famílias mais alargadas, das comunidades e dos contextos mais tradicionais enquanto fontes de passagem de informação e de ensinamento da maternidade coloca novas pressões aos pais (e às mães, em particular) e pode ajudar a explicar o aparecimento destes novos campos periciais.  As certezas dos contextos sociais tradicionais assentes nos costumes, na rotinização dos hábitos e na transmissão de conhecimentos são substituídas pelas certezas produzidas pelos “peritos” e “especialistas”. No entanto, este tema carece de uma análise mais aprofundada que em muito pode contribuir para entender a amamentação enquanto prática socialmente construída.

Bibliografia

Augusto, Amélia, Neves, Dulce M., Henriques, Vera (2023), “Breastfeeding experiences and women’s self-concept: Negotiations and dilemmas in the transition to motherhood” em Frontiers in Sociology, pp. 1-14

Parsons, Talcott (1972), “Professions” em David Sills (ed.), International Encyclopedia os Social Science, volumes 11 e 12, Nova Iorque, The Macmillan Company and the Free Press, pp. 536-546.

Torres, Jennifer (2014), “Expertise and Sliding Scales: Lactation Consultants, Doulas, and the Relational Work of Breastfeeding and Labor Support” em Gender and Society, volume 29, nº 2, pp. 244-264.