Dia Internacional da Não Violência

Inês Trindade, Doutoranda em Sociologia (Iscte)

A violência obstétrica é um tema que tem ganho cada vez mais destaque em Portugal, e que é pertinente discutir no Dia Internacional da Não Violência. Os relatos de mulheres (APDMGP, 2019; Santos, 2012) que têm sido vítimas deste tipo de violência em Portugal (Aguiar, 2010; Oliveira et al., 2002) tornam mais visível o quanto o contexto do parto pode configurar situações graves de perda de autonomia e de desrespeito pela autodeterminação. Com efeito, as representações sociais prevalecentes em contextos de sociedades medicalizadas funcionam como fator de mitigação do questionamento da intervenção médica no processo de nascimento, devido ao reconhecimento social e cultural da profissão médica que parece ainda estar muito enraizado (Conrad, 2007).

As diferentes posições dos agentes na estrutura social geram diferentes capacidades para agir e exercer poder (Parker, 2000). O poder remete para um tipo particular de ação social, uma ação de imposição de vontade (Weber, 2004 [1922]). Por outro lado, existe uma relação entre o poder enquanto capacidade de impor a sua vontade e os recursos necessários para realizar essa imposição. Os saberes profissionais são um dos recursos necessários para exercer poder no contexto hospitalar. Nesse sentido, os médicos fazem uso do seu conhecimento na área da obstetrícia para legitimar práticas em processos de nascimento, o que configura uma transformação de saberes em poderes (Carapinheiro, 1993).

O poder que diferentes profissionais de saúde materna detêm sobre a mulher amplifica-se pelo facto de o hospital ser o local padrão para o parto (Pintassilgo et al., 2023), sendo este um acontecimento mediado pela obstetrícia enquanto especialidade médica legítima de conhecimento e prática no acompanhamento e gestão do processo de nascimento. Desta forma, é reforçada a importância do obstetra e do hospital no processo do nascimento. Mesmo em gravidezes saudáveis, a intervenção médica passou a ser concebida como algo natural (Sadler et al., 2016). Esta visão do parto, cujo nível de intervenção o equipara a uma patologia, pode dificultar o desenvolvimento de competências essenciais, como a capacidade de estabelecer uma relação de confiança com a parturiente e atender às suas necessidades a nível psicológico e emocional.

Os intervenientes – tanto do lado das famílias, como do lado de profissionais – ao conceberem o parto como um problema médico, contribuíram e continuam a contribuir para a medicalização do parto. O discurso de risco que concebe o processo de nascimento como patológico, quando antes era encarado como natural, suporta a medicalização do nascimento (Silva e Alves, 2003). E este é um discurso difícil de criticar e que facilmente conduz a discussões polarizadas. Contudo, as redes sociais digitais vieram facilitar essa crítica, na medida em que permitem a partilha de testemunhos de mulheres em várias geografias, dando visibilidade às experiências individuais de violência obstétrica. Esse acesso a informação e partilha de experiências condiciona a força do poder obstétrico (Brito, 2021), sobretudo perante as experiências de parto fora do contexto hospitalar (como os nascimentos em casa) que, em certo sentido, decorrem afastados das esferas do poder médico e do público, ainda que não os possamos considerar eventos desmedicalizados (Santos e Augusto, 2016) e alheios à construção e legitimação dos poderes profissionais.

De qualquer forma, no que se refere às circunstâncias da experiência de parto e, mais especificamente, ao local de parto, com demasiada frequência parece haver pouca escolha, ainda que a ideia de humanização e da escolha das mulheres tenda a transmitir o contrário (Oakley, 2016). Tal enquadramento reforça a necessidade de discussão sobre a prática obstétrica em Portugal, o que evidencia a necessidade de se repensar a própria formação dos profissionais de saúde que assistem o parto.

Referências Bibliográficas

Aguiar, J. (2010), Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de género, São Paulo, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo.

APDMGP (2019), Submission of Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) to the United Nations Special Rapporteur on violence against women, Retrieved from United Nations Office of the High Commissioner on Human Rights.

Brito, L. (2022), “Lutas partilhadas: a importância dos movimentos sociais digitais para o reconhecimento da violência obstétrica”, Revista Arandu (online).

Carapinheiro, G. (1993), Saberes e poderes no hospital, uma sociologia dos serviços hospitalares, Porto, Edições Afrontamento.

Conrad, P. (2007), The Medicalization of Society, Baltimor, The Johns Hopkins University Press.

Oakley, A. (2016), “The sociology of childbirth: an autobiographical journey through four decades of research”, Sociology of Health & Illness, 38(5), pp. 689–705.

Oliveira, A., Diniz, S., e Schraiber, L. (2002), “Violence against women in health-care institutions: an emerging problem”, The Lancet, vol 359, pp. 1681-1685.

Parker, J. (2000), Structuration, Buckingham, Open University Press.

Pintassilgo, S., Santos, MJDS., Trindade, I. & Neves, DM. (2023), “Home Birth in Portugal—A Comprehensive Analysis Based on Official Statistical Data”, Social Sciences, 12(6), 314.

Sadler, M., Santos, MJDS., Ruiz-Berdún, D., Rojas, GL., Skoko, E., Gillen, P. & Clausen, JA. (2016), Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence, Reproductive Health Matters, 24(47), pp. 47–55.

Santos, MJDS., e Augusto, A. (2016), “Se estava tudo bem, porque é que eu havia de ir a uma obstetra?”- Identidade, risco e consumo de tecnologia médica no parto domiciliar em Portugal, Sociologia, Problemas e Práticas, (82), pp. 49–67.

Santos, MJDS. (2012), Nascer em casa: a desinstitucionalização reflexiva do parto no contexto português, Dissertação de Mestrado, Lisboa, Iscte.

Silva, L. e Alves, F. (2003), A Saúde das Mulheres em Portugal, Porto, Edições Afrontamento.

Weber, M. (2004 [1922]), “Max Weber”, em M. Braga da Cruz (org.), Teorias Sociológicas: os fundadores e os clássicos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 257-298.