A mortalidade materna em Portugal: o que dizer da sua evolução?

Por Sónia Cardoso Pintassilgo, Dulce Morgado Neves e Mário JDS Santos

A mortalidade materna apresenta ainda níveis muito desiguais, de acordo com o contexto a que se reporta, sendo a taxa de mortalidade materna um dos indicadores privilegiados para a análise das condições sanitárias, mas também sociais de um país ou região. É nesse sentido que este indicador é considerado para monitorizar o cumprimento do Objetivo para o Desenvolvimento Sustentável referente à Saúde de Qualidade (ODS 3), que prevê uma redução dos níveis de mortalidade materna, a nível global, para valores inferiores a 70 óbitos maternos por 100 000 nados-vivos.

A União Europeia a 27 países (UE27) é uma das regiões do mundo que cumpre o objetivo de redução dos níveis de mortalidade materna, tendo alcançado, em 2017, o valor de 4,5 óbitos maternos por cada 100 000 nados-vivos e já detendo, desde o início do milénio, resultados reduzidos de mortalidade materna.

Esta tendência de redução dos resultados da taxa de mortalidade materna na Europa é acompanhada, no caso de outros países e regiões, por três tendências distintas (Figura 1). A primeira dá conta de uma proximidade com o caso europeu, no sentido de se verificarem valores tendencialmente baixos no início do milénio, que vão ainda apresentando uma redução até ao último ano em análise (ano de 2017). É o caso, por exemplo, do Reino Unido, da Austrália e do Japão. A segunda tendência é a que se encontra ainda em diferentes países e regiões do mundo, que apresentam uma redução dos níveis de mortalidade materna, mas a partir de resultados muito elevados no início do milénio. Alguns desses países e regiões, como a Índia, a Indonésia e até a África do Sul, estão ainda longe de alcançar a meta definida nos ODS, com resultados acima dos 100 óbitos maternos por 100 000 nados-vivos. A terceira tendência é a que remete para um retrocesso na evolução do fenómeno, com um aumento dos resultados da taxa de mortalidade materna. Assim, países como o Canadá e, sobretudo, os EUA, registaram, entre o início da década de 2000 e o ano de 2017, uma subida nos valores desse indicador. No último ano referido, os EUA apresentavam uma taxa de mortalidade materna próxima de 20 por 100 000, acima de países como a Rússia, Arábia Saudita e Turquia e bastante acima da média da EU a 27 países.

Figura 1. Taxa de mortalidade materna (por 100 000 nados-vivos), 2000 e 2017, em diferentes países/regiões do mundo


Fonte: Eurostat (2021), The EU in the world, statistical book. 2020 edition

Estes resultados atestam a grande desigualdade nos resultados da saúde materna entre diferentes países e regiões do mundo, sendo que a desigualdade se encontra, também, no interior dessas regiões ou países, de acordo com as especificidades dos contextos. Assim, por exemplo, no caso europeu, apesar da redução dos níveis de mortalidade materna para metade, em menos de duas décadas, o resultado nacional mais elevado em 2015 era 25 vezes superior ao mais reduzido. Por outro lado, no caso das mulheres de origem não europeia a taxa de mortalidade materna é 60% superior à das autóctones. Para além disso, a recolha e as condições de produção de informação sobre mortalidade materna são muito desiguais, entre países (WHO, 2022, Europe, Data and Statistics).

A mortalidade materna não é, assim, um fenómeno com uma frequência linear, no que diz respeito à sua evolução temporal, mas também à sua contextualização geográfica. Essa evolução e contextualização deverão ser analisadas, então, considerando os aspetos e determinantes que caracterizem, de forma mais abrangente, os países e regiões em análise.

É com este enquadramento que nos debruçamos sobre os resultados relativos à mortalidade materna de Portugal. Os valores referentes à taxa de mortalidade materna para 2020, em Portugal, dão conta de uma subida dos valores deste indicador, face aos anos anteriores, e que reforça uma tendência de crescimento na expressão do fenómeno, quer consideremos o indicador ano a ano, quer em quinquénios (figuras 2 e 3). Com efeito, é visível, nos últimos anos, uma alteração clara nos valores da mortalidade materna, com um valor – de 15,1 óbitos maternos por 100 000 nados-vivos, no último quinquénio – francamente superior aos dos quatro anteriores (cujo máximo foi de 6,2 por 100 000).

Figura 2. Taxa de mortalidade materna (por 100 000 nados-vivos), Portugal, 1994-2020



Fonte: Elaboração nascer.pt, a partir de INE (2022), Estatísticas Demográfica e da Saúde 1994-2020 (consulta em pordata.pt)

Figura 3. Taxa de mortalidade materna (por 100 000) por períodos quinquenais, Portugal, 1996-2020

   Fonte: Elaboração nascer.pt, a partir de INE (2022), Estatísticas Demográfica e da Saúde 1996-2020 (consulta em pordata.pt)

Concentrando-nos, agora, nos valores dos óbitos maternos registados mais recentemente, e considerando o período dos últimos oito anos (figura 4), verifica-se que o número de óbitos maternos em 2020 é quase 4 vezes superior ao verificado em 2013. Apesar da importância de se apresentar estes resultados em relação aos nados-vivos ocorridos (a que corresponde a taxa de mortalidade materna já apresentada), se considerarmos que a mortalidade materna é um fenómeno evitável (Loudon, 1992; WHO, 2022), então, importa não deixar de considerar cada caso singular e conhecer, com precisão, o número exato e absoluto de casos de óbitos maternos que, em princípio, não deveriam ter ocorrido, assim como a expressão da  tendência da sua evolução.

Figura 4. Óbitos maternos (n.º), Portugal, período 2013-2020

   Fonte: Elaboração nascer.pt, a partir de INE (2022), Estatísticas Demográfica e da Saúde 1996-2020 (consulta em pordata.pt)

Com vista a ultrapassar o possível efeito de enviesamento decorrente das oscilações anuais (Bouvier-Colle et al., 2012), e para detalhar a análise com novas variáveis, analisamos o total de óbitos maternos ocorridos nesse período de oito anos (são 79 os óbitos maternos que ocorreram entre 2013 e 2020), agora por grupo etário e região (figuras 5 e 6). A frequência de óbitos maternos é mais elevada na Área Metropolitana de Lisboa (onde também a fecundidade é mais elevada), com 32 óbitos maternos no período. As regiões do Norte e do Centro apresentam 20 e 14 casos, respetivamente. A Região Autónoma dos Açores não registou nenhum óbito materno, ao longo do período.

Figuras 5 e 6. Óbitos maternos (n.º) por região (NUTSII) e grupo etário, Portugal, período 2013-2020

Fonte: Elaboração nascer.pt, a partir de INE (2022), Estatísticas da Saúde 2013-2020

Em termos etários, a distribuição dos óbitos maternos revela o maior número de casos em dois grupos etários, que apresentam o mesmo resultado. Assim, entre os 25 e os 34 anos, tal como entre os 35 e os 44 ocorreram 36 óbitos maternos. O grupo etário mais jovem (dos 16 aos 24 anos) apresenta um maior número de óbitos do que os dois grupos etários mais velhos em conjunto, o que, a juntar à informação anterior, revela que a maioria dos óbitos maternos se concentra em idades até aos 34 anos.

Ora, a ideia de que o aumento da mortalidade materna em Portugal dever-se-á, em parte, ao adiamento do calendário da fecundidade, isto é, ao aumento da idade média das mães no nascimento dos filhos, não encontra fundamento nestes dados, nem quando introduzimos uma perspetiva comparativa internacional. Com efeito, se considerarmos, por exemplo, os países europeus – Espanha, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Suíça – que apresentam as idades médias no nascimento dos filhos mais elevadas (todas superiores a 32 anos), verificamos que esses resultados não encontram paralelo no aumento da mortalidade materna, ao longo de mais de duas décadas, em que consideramos períodos de análise quinquenais, para evitar potenciais enviesamentos decorrentes dos resultados anuais.

Já Portugal, que apresenta uma idade média das mães no nascimento dos filhos mais baixa do que qualquer desses países no final do último quinquénio, apresenta um resultado claramente mais elevado para a taxa de mortalidade materna (figura 7).

Figura 7. Taxa de mortalidade materna (por 100 000) e idade média das mães no nascimento dos filhos, por períodos plurianuais, Portugal e cinco países europeus, 1996-2020

Fonte: Elaboração nascer.pt, a partir de INE (2022), Estatísticas Demográfica e da Saúde 1996-2020 (consulta em pordata.pt)

Nota: Os resultados do último período consideram o ano de 2020 apenas no caso de Portugal. Para os restantes países, o último ano com informação disponível era o de 2019.

Para além disso, a composição social da população em idade fértil e fecunda não é homogénea, como não são homogéneas as condições assistenciais de acordo com essa composição (Pintassilgo e Carvalho, 2017). Ora, essa variação tem impacto nos resultados em saúde materna. São disso exemplo, como referido atrás, os resultados de mortalidade materna mais elevados no caso da população que vive na Europa, mas tem naturalidade diferente (WHO, 2022).

Será, por isso, redutor considerar para a análise da mortalidade materna apenas a informação oficial disponibilizada, que resume a informação a totais de óbitos maternos e à sua distribuição etária e geográfica. Serão muitos outros os fatores que também contribuem para a explicação do fenómeno, cuja tendência se afasta da média europeia e se aproxima, agora, da tendência de retrocesso dos resultados de países como os EUA e o Canadá. Nesses países, questiona-se, agora, o modelo assistencial no nascimento, fortemente orientado para a intervenção.

Os resultados da evolução da mortalidade materna em Portugal devem ser analisados de forma muito rigorosa e detalhada, porque espelham alterações nas condições de nascimento do país, que terão causas diferenciais e multidimensionais. Essa análise não é possível com os dados existentes ou tornados públicos, nem se esgota a partir de uma abordagem unidisciplinar.

Será necessário, não só promover uma recolha exaustiva, completa e integrada da informação associada aos óbitos maternos e às condições sociais e assistenciais dos mesmos – e também do fenómeno sentinela que é a morbilidade materna –, como promover uma análise que convoque os contributos de diferentes áreas disciplinares, incluindo as das ciências sociais. Esses contributos ajudarão a compreender as nuances e as especificidades dos resultados encontrados, bem como a atuar para mitigar as suas causas.

[1] O presente texto é uma versão reduzida de um artigo científico a publicar em revista científica.