De que saúde falamos quando falamos de saúde no nascimento?


Eva Diniz, Investigadora Integrada do WJCR, Ispa-Instituto Universitário

Hoje comemora-se o Dia Mundial da Saúde, instituído pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e celebrado desde 1950. Em Portugal, esse dia especial permite-nos (re)pensar a saúde no país, valorizando conquistas alcançadas e identificando debilidades que persistem. É um bom momento para considerarmos temas fundamentais ao desenvolvimento humano, como o nascimento. A saúde é, provavelmente, dos assuntos com maior importância social. Mas o que é a saúde? Ao pedirmos a pessoas de diferentes papéis sociais para nomearem as primeiras palavras que lhes ocorrem quando pensam em saúde, surgiram palavras como: médicos, medicamentos, exercício, qualidade de vida, ausência de doença. Alguns, poucos, mencionaram ainda: bem-estar, direitos, igualdade, autonomia. Uma rápida pesquisa online não nos traz resultados muito diferentes. Ou seja, apesar de a saúde ser definida pela OMS como “completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”, essa concepção parece estar distante da nossa realidade. A saúde é ainda predominantemente encarada, tanto por profissionais, como pela população no geral, na sua dimensão estritamente física. Essa visão, naturalmente, reflete-se na organização das estruturas e práticas de saúde, nomeadamente na assistência ao nascimento.

Um estudo muito recente publicado no renomado jornal científico, The Lancet, revela que, em Portugal, em comparação com outros 11 países da União Europeia, persiste o recurso frequente a práticas consideradas violentas (tanto física, quanto psicologicamente) e a negligência durante o parto. Esse estudo evidenciou também a utilização ainda rotineira de práticas médicas sem evidência científica e desaconselhadas pelas OMS, como a episiotomia ou a manobra de Kristeller. Além disso, salienta como o parto é vivido pela maioria das mulheres portuguesas como um momento de medo, insegurança, dor e desrespeito. Como esse estudo e suas conclusões são recebidos pelas entidades que tutelam o nascimento em Portugal? Pela desvalorização dos dados, devido à baixa mortalidade materna e infantil no parto. Seguramente, baixa mortalidade e segurança no nascimento são almejadas (e festejadas) por todos os profissionais, parturientes e sociedade civil, mas não bastam. A meta de saúde no nascimento terá de ser mais ambiciosa. A saúde no parto não pode ser aferida somente pela baixa mortalidade. Saúde não é apenas viver, como a própria OMS observa na sua lapidar definição.

Inúmeros inquéritos e relatos na imprensa têm retratado o ambiente hostil e de medo associado ao nascimento em Portugal. Os dados reais são desconhecidos, já que não há estudos oficiais sobre as condições de parto em Portugal. No entanto, incontáveis relatos denunciam frequentes maus-tratos, nomeadamente limitação de movimentos, ausência de comunicação sobre a evolução do parto e de eventuais intervenções necessárias, intervenções dolorosas e sem consentimento – muitas vezes desnecessários e contra a vontade expressa da mulher, humilhações, afastamento precoce do bebé sem motivo clínico. Este cenário, cada vez mais combatido por movimentos de mulheres e de alguns profissionais de saúde, não poderá ser escamoteado com as taxas de sobrevivência materno-infantil. Não poderá continuar a ser ignorado que o parto, para muitas mulheres, em especial aquelas com menos instrução e recursos, é associado a medo e desconfiança. As mulheres esperam e desejam entre si “sorte” para o parto. Se isso era aceitável em décadas anteriores pela precariedade no acesso aos serviços de saúde, ou tecnologias menos avançadas, não é aceitável hoje. Um parto respeitoso não pode depender de sorte. A saúde plena no parto, conforme enunciada pela OMS, não pode ser sorte. A saúde plena é um direito inalienável e deverá estar disponível para todos. Aos profissionais cumpre assegurar a saúde física e o ambiente de tranquilidade, respeito e cumplicidade para que se alcance a saúde psicológica e social.

A saúde no parto, no entanto, não termina no parto. Diversos estudos têm revelado a importância do parto para o bem-estar da mulher, do/a seu/sua parceiro/a e para o bebé nos meses posteriores ao nascimento. Ou seja, ao circunscrever a atenção no parto à saúde física, desfechos negativos poderão ser potencializados. Experiências negativas de parto estão associadas a piores resultados clínicos, nomeadamente pior recuperação física e psicológica, pior autoestima e sentimento de competência para cuidar do bebé, maiores taxas de depressão pós-parto e mais dificuldade na relação com o bebé. Importante é também o facto da percepção do parto, positiva ou negativa, não depender da concordância entre parto vivido e desejado, mas da forma como as alterações ao plano inicial foram explicadas e atendidas. Ou seja, a pior saúde psicológica não parece depender de um parto distante do imaginado, mas da qualidade do atendimento prestado. Aspetos relacionados com o ambiente de parto e a qualidade da relação parturiente-profissionais são determinantes para a saúde psicológica da mulher. Estes dados enfatizam a importância dos cuidados no parto (e na saúde em geral) contemplarem a dimensão interpessoal e social. Deste modo, toda a parturiente deve receber atendimento de saúde pleno, preservador do bem-estar físico, psicológico e social, como preconiza a OMS na sua definição de saúde.